segunda-feira, 29 de junho de 2009

Quando se toca na ficção orwelliana



De maneira direta, a percepção do mundo por Orwell expressada em seus textos autobiográficos (aponto minha atenção para obras como Lutando na Espanha, Na pior em Paris e Londres e ensaios como Um enforcamento e O abate de um elefante), elabora a configuração de uma consciência crítica transposta no autor-criador que projeta diretamente nos personagens de seus romances. Tomando por base os romances A Revolução dos Bichos e 1984, tem-se o que é conhecido como romance distópico, ou seja, uma anti-utopia, uma utopia de sentido negativo, na visão do estudioso de literatura Massaud Moisés “a antevisão de um lugar imaginário onde reinaria o caos, a desordem, a anarquia, a tirania, ao contrário do paraíso cristão ou dos mitos de felicidade eterna”.
Relembrando que o autor-criador possui como característica básica a materialização da relação axiológica com o personagem do romance em seu mundo, é possível afirmar que os processos psicológicos envolvidos na criação ou o depoimento do autor-pessoa sobre seu processo criador não importam, pois este não experiencia os processos psicológicos criativos como tais, apenas sua materialização na obra. A obra materializada não deve ser confundida com a vida de seu autor por mais semelhança que exista entre ambos. É necessário considerar que não se pode afirmar nada (ou quase nada) sobre características pessoais de um determinado autor através de uma análise de sua produção literária, mas no caso de George Orwell, esta consideração gera algumas confusões. Sabe-se que o autor viveu com intimidade em submissão à ações autoritárias, sejam governamentais ou militares, conheceu intimamente a exploração, a fome, o desemprego, o medo, o abuso de diversos tipos de poder, e sobre isso é que construiu um estilo único e maduro de se observar o mundo e se posicionar diante a ele. Desta forma, percebe-se que em suas obras de ficção, é trabalhado um autor-criador (a consciência critica presente na ficção) muito próximo do caráter ideológico do autor-pessoa (o próprio Orwell, no caso), oferecendo uma idéia errônea de que algumas obras da ficção orwelliana também assume um caráter confessional.
Afirmar que 1984 é principalmente um sintoma da condição psicológica de Orwell, o espasmo de um homem transtornado que sofria de fantasias paranóicas, era perturbado pela sujeira e temia que o contato sexual causasse repreensão por parte daqueles que exerciam a autoridade, é uma declaração bastante complicada. Essa explicação, a parte sua aparente e intolerável inconstância, explica em demasia muito pouco. Muitas pessoas sofrem com pesadelos e nutrem sentimentos ambíguos com relação ao sexo, ao dinheiro e ao poder, mas poucas conseguem escrever livros com o ímpeto de 1984. Como afirma Howe afirma em um ensaio literário sobre a obra 1984 “o livro pode ser um pesadelo e é indubitavelmente baseado nos problemas psicológicos do seu autor. Mas também se baseia em sua sanidade psicológica, caso contrário não poderia penetrar de forma tão profunda na realidade social de nossa época”.
O que causa o estranhamento e realmente provoca o leitor é o fato de 1984 ser o último livro escrito por Orwell e quase produzido em um fôlego só, camuflando várias características pessoais do autor no protagonista Winston Smith, desde o início acentuando o costume subversivo da escrita. Winston resolve anotar seus pensamentos em um diário e, quando percebe a dificuldade de um possível leitor de suas notas, dedica seus escritos ao futuro incerto e ao desconhecido passado, que se apresentam bastante nebulosos:
"Ao futuro ou ao passado, a uma época em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, e que não vivam sós – a uma época em que a verdade existir e o que foi feito não puder ser desfeito:
Cumprimento da era da informidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensar!"
(1984).
Winston Smith (personagem fictício), assim como Orwell (pessoa física), insiste no hábito de escrever um diário. Já foi visto que Orwell possui este hábito, com a diferença de se expor com uma pesadíssima carga crítica sobre o que se escreve. Em 1984, aparentam várias referências ligadas ao próprio autor bem mais fortes que o simples hábito de fazer anotações em um diário. Winston Smith sente um misto de ojeriza e nojo de ratos, e é justamente um animal como este que é utilizado para torturá-lo. Na esfera não-ficcional, Orwell sentia um pavor enorme com ratos. Em seu estágio forçado com a pobreza, descrito em Na Pior em Paris e Londres, o autor conviveu com animais nojentos de toda espécie (pulgas, baratas, percevejos que andavam enfileirados nas paredes dos hotéis e ratos que invadiam porões e lixeiras das cozinhas de restaurantes sujos em Paris) e, para ele, o uso de ratos era o mais horripilante objeto de tortura. Ao final de sua vida, acabaria revendo todas suas opiniões, menos a que tinha sobre os ratos.
Embora haja inúmeras evidências entre o autor e seu personagem, 1984 não pode ser considerada uma obra autobiográfica, nem algo próximo ao conceito de autobiografia. Isso porque na criação artística é desenvolvido um complexo jogo de deslocamentos envolvendo várias vozes sociais. O autor representa uma voz social que é produto de sua existência e sua voz é atravessada à composição da voz social a um personagem. Várias línguas sociais são direcionadas para vozes alheias e configurando desta forma a construção do todo artístico a uma certa voz. Desta forma, não importam as semelhanças aparentes entre Orwell e Winston Smith, pois mesmo que o escritor coloque suas idéias na boca do herói da trama, não são mais suas idéias porque estão precisamente na boca do herói e se conformam ao seu todo.
Assim como A Revolução dos Bichos apresenta uma crítica aos caminhos tomados pela União Soviética em forma de alegoria, 1984 remete a alguns itens básicos ligados a criação e manutenção de um estado totalitário, embora nenhum governo na história conseguiu a perfeição que a Oceania alcançou em na obra 1984. A figura do Grande Irmão pode tanto se referir a Stalin quanto a Churchill, pois ambos trabalhavam em um tipo de propaganda voltada para a exaltação do líder como um herói. No momento em que Winston comete a crimidéia de questionar sobre a posição hegemônica e o significado das máximas “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e “ignorância é força”, o protagonista recorre ao livro proibido de Emmanuel Goldstein Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico, uma imitação de A Revolução Traída de Leon Trotsky.
Além dessas, é possível encontrar inúmeros pontos em que ocorre o dialogismo entre o contexto histórico e ideológico vigente no período da primeira metade do século XX e os fatos narrados no romance distópico de Orwell.
A gravidade de 1984 não se contém apenas no dialogismo citado. É exposto, assim como a intenção de Winston Smith, o desejo de mostrar uma expectativa quanto ao futuro através da literatura. Ultrapassa a intenção de criar, explorar e criticar metalingüisticamente um universo paralelo criado pela literatura em alusão ao mundo real, e beira a preocupação e a opinião particular do autor de que pouca coisa impede a ocorrência de um processo que deteriore a liberdade (desde a liberdade individual e social até a do pensamento) de forma gradativa.
Pouco antes de sua morte, Orwell escreveu: “meu romance 1984 não pretende ser um ataque ao socialismo, ou mesmo ao partido trabalhista britânico, e sim uma demonstração das perversões às quais uma economia centralizada é suscetível... Não creio que esse tipo de sociedade que descrevo necessariamente venha a existir, acredito porém... que algo parecido poderia acontecer.”
A partir dessa consciência particular que Orwell configura uma consciência que será encontrada em sua ficção. Sistematizando, a consciência pessoal de Orwell é responsável pela configuração da consciência presente na criação estética. Em outras palavras, a consciência que Winston Smith e Julia tomam no decorrer da narrativa de 1984 é fruto do perfil axiológico de seu autor, mas nunca deve ser considerada como a consciência de seu autor.

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