terça-feira, 12 de maio de 2009

No espelho




Havia mais de uma semana que não via ninguém e nem se alimentava de maneira considerável. Não por falta de comida em sua dispensa ou por falta de dinheiro, mas por seu espírito estar corroído por uma doença em que não existe profilaxia. Sofria de tédio. O reflexo de seu rosto no espelho do quarto era a única companhia no único cômodo habitado no frio e escuro apartamento, e em frente ao espelho que se encontrava no momento que foi único de epifania.
Olhava para os olhos de si mesmo e enxergava um infinito vazio. O rosto magro e sem expressão nenhuma deixava a mostra o monstro que mais sentia medo: sua existência.
Durante anos evitara o medo à mesma proporção que evitara o conhecimento. É inerente ao ser humano a tendência de sentir medo e ânsia do que não conhece. Sentado defronte ao espelho ele não se aventurava a descobrir o que não conhecia. Evitava conhecer novas pessoas, evitava conhecer o mundo, o amor, o prazer, fazia de tudo para evitar as conseqüentes dores trazidas pelo conhecimento. Somente sem medo conhecia o necessário para sua sobrevivência. Pequenos atos como acender um cigarro, preparar um café ou um chá, comer alguma coisa de vez em quando...
Sozinho no quarto, a companhia de seu reflexo o assombrava mais que qualquer outro perigo. Aquela imagem pálida, fria e suja refletida no espelho revelava todo o conhecimento do ser que não conhecia. Sabia muito bem das letras, das ciências, do estudo pragmático da vida e da biologia, mas não conhecia a si mesmo. Não se conhecer. Assim como uma grande castanheira depende de suas raízes para se sustentar, a falta de auto conhecimento era a raiz que sustentava seu medo e dava frutos do tédio.
A verdade é que sentia medo de se conhecer profundamente. Sabia que, superficialmente, não era bom, nem belo e olhar para aquele espelho era como olhar para um poço. Via apenas o próprio reflexo junto à sujeira, moscas e folhas sobre a água, e para conhecer o interior, o que está abaixo da superfície, poderia significar o afogamento, o desespero de desejar a morte.
Olhando no espelho, percebeu que dois terços de século se passaram em sete minutos. Perdera a noção do tempo que não utilizava. Aliás, o tempo tornara-se uma convenção obsoleta para sua vida.
Desviou o olhar do espelho por um instante e se sentiu maravilhosamente bem. Foi como se o olhar que o julgava mudasse de opinião subitamente, mas este rápido bem estar acabou quando se voltou para o espelho. Piscou, e o reflexo cruel repetiu o movimento como se tal movimento fosse perfeitamente previsível. Levantou sua mão e tocou levemente o espelho e observou-se fazendo a mesma ação do outro lado do objeto.
De repente, como um susto, atirou um golpe com a mão no reflexo desgraçado. O sangue que desvanecia de sua mão descorada pingou e tornou pingar na poeira do chão. A dor lancinante funcionava como um anestésico para seu tédio e, ao olhar para o suporte vazio onde ficava o espelho, percebeu que não havia mais reflexo algum na parede. Não havia mais ninguém além dele. Ter destruído o espelho e sua imagem provocou-lhe uma felicidade quase infantil e apenas algumas gotículas de seu sangue espirradas na parede ocupava o espaço do artefato que poderia provocar o fim de sua vida.
Segundos depois, deitou-se aliviado e dormiu tranqüilamente sabendo que a maior ameaça de sua vida havia sido aniquilada.

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